Como era São José do Calçado em 1873, segundo o naturalista Manoel Basílio Furtado

 É possível, que a maioria dos calçadenses não tenha conhecimento sobre este valiosíssimo registro histórico o Vale do Itabapoana no século XIX, quando o médico e naturalista Manoel Basílio Furtado este de passagem em nossa região, com destino às minas da Gruta do Castelo-ES, com relatos minuciosos sobre as localidades que ele passou, como Bom Jesus do Itabapoana, no qual ele permaneceu por aproximadamente três meses, e nesta publicação temos os relatos dele sobre sua passagem em São José do Calçado, no início de agosto de 1873.


Dia  5  de  Agosto.  –  Atravessamos  o  rio  Itabapoana  na povoação  do  Senhor  Bom  Jesus  em  uma  especie  de  barca construida sobre duas canôas, e seguimos pela estrada nova do Calçado em direcção ás minas do Castello, tendo por companheiros de viagem o distincto medico Dr. Mauricio Murgel, e o meu amigo o Sr. Ernesto Fuchs, habil photographo, que teve a bondade de aggregar-se á pequena caravana para compartilhar comnosco os enfados de um passeio rude atravez de mattas invias e baldas de todo o recurso.


Esta  estrada  nova  do  Calçado  não  é  mais  do  que  uma  vereda escabrosa,  caprichosamente  sinuosa,  semeada  de  pedras  soltas,  com enormes  caldeirões  e  atoleiros,  precipicios  medonhos,  não  levando-se em linha de conta as madeiras cahidas, as taquaras atravessadas, os espinhos,  as  pontes  furadas,  os  buracos  e  as  raizes. os  habitantes  da matta descem em seus cavallos magros e desferrados esses desfiladeiros apiques com a mais estoica indifferença e sangue frio: soltam as redeas aos  animaes,  e  estes,  curvando-se  um  pouco  approximam  as  patas posteriores  das  anteriores  e  deixam-se  deslizar  a  esmo  pela ladeira escorregadiça  abaixo,  á  maneira  dos  patinadores  sobre  o  gelo,  e  os animaes são tão adestrados que passam com summa agilidade por cimade tocos, raizes, pedras e buracos sem os tocarem.


Depois  de  atravessarmos  em  paiz  todo  montanhosos  e  coberto de mattas virgens, chegamos ao Arraial de S. José do Calçado, situado entre  morros,  porém  com  sufficiente  largueza  para  uma  grande povoação. Todo o territorio e logradouro publico foi cedido gratis pelo distincto mineiro Coronel José Dutra Nicacio para a sua fundação. É farto  d’agua  potavel  e  muito  sadio.  As  mattas  virges  que  ornam  este florescente districto são magnificas para o cultivo do café, e rivalisam com as melhores que conhecemos nas provincias de Minas e S. Paulo.


«Les forêts du Brésil sont sa plus riche, sa plus ravissante parure». Assim se exprimia M. Eugenio Delessert, extatico diante do novo e deslumbrante quadro que lhe offereciam, pela primeira vez, as nossasflorestas virgens. Lastimamos  que  a  maior  parte  dos  fazendeiros  não  esteja  de accordo  com  esta  grande  verdade,  o  que  será  de  muito  funesta consequencia para os seus vindouros.


Por toda a parte o homem fica abysmado na contemplação da vandalica  degradação  das  nossas  mattas  primitivas  pelo  fogo  e  pelo machado da civilisação! O  cemiterio  publico,  segundo  o  tradiccional  uso,  é  no  interior  da povoação e no centro da sua melhor praça; as casas são quasi todas terreas, a igreja é pequena, sem architectura e não está ainda concluida; é filial da frequezia de S. Pedro do Cachoeiro do Itabapoana, e foi ha tempos elevada á categoria de parochia; infelizmente porém até hoje ainda não foi provida canonicamente, dizem pessoas de todo o criterio, por não ter a assembléa legislativa provincial impetrado do Exm. Sr. Bispo o seu placet para a sua creação.  Muito  longe  estamos  de  pretender  censurar  este  acto;  se  S.  Ex. Rvma.  assim  procedeu  foi  porque  actuou  no  seu  espirito  alguma  razão ponderosa, cujo alcance n’este momento não podemos attingir.


É praxe as assembléas provinciaes consultarem os seus respectivos diocesanos  sobre  a  utilidade  e  conveniencia  publica  da  creação  de freguezias, o que é muito justo e necessario, a pratica contraria só poderá trazer abusos e onus aos cofres do Estado; mas não podemos deixar de observar que o Bispo de Mariana, Conde da Conceição, de saudosa e santa memoria, nunca deixou de dar provimento ás freguezias creadas mesmo contra o seu placet, ou sem ser consultado, apezar de residir 12 kilometros apenas da séde da assembléa. 


O  Piáu,  Descoberto,  Taboleiro  e  Porto  de  Santo  Antonio  foram creadas freguezias, não obstante o seu veto; e nem por isso as suas provisões fizeram-se esperar. Podiamos citar dezenas de factos d’esta ordem, porém restringimo-nos a estes, porque alguns d’elles tiveram logar no tempo em que servimos na assembléa provincial e por isso damos d’elles testemunho. S. José do Calçado dista 81 k. da freguezia de S. Pedro e 16 k. da do Bom Jesus. As mesmas queixas contra os abusos e faltas dos soccorros espirituaes!


Referiu-nos um fazendeiro importante do logar e pessoa de muito criterio, que os capellães contractados pelo povo para celebrarem e administrarem os  Sacramentos  não  demoram  aqui,  porque  nunca  pódem  obter  licenças para casamentos ou baptisados, e nem querem submetter-se ás imposições e exigencias vexatorias do vigario, e que o resultado é os doentes morrerem sem  a  consolação  espiritual,  os  innocentes  sem  o  baptismo,  e  que,  para maior cumulo de escandalo, o pai que não tiver os meios de emprehender uma longa viagem de 81 k. até a casa do vigario, ou que não tiver a bolsa bem recheada para comprar a licença, está impossibilitado de casar a sua filha! 


O ridiculo prurido que hoje se desenvolve e contagia todas as classes, e que chega mesmo a invadir até os caracteres os mais sérios, de accusarem e tornarem odiosos os padres ainda mesmo aquelles que por suas virtudese  saber  estão  fora  do  alcance  d’essas  peçonhentas  babas  unicamente  por moda, ou para se mostrarem homens de idéas adiantadas nos faz suspeitar que em  tudo  isto  ha  alguma  cousa  de  exagerado  e  de  colorido  carregado  da epocha, posto que o facto no essencial seja verdadeiro.ás  duas  horas  da  tarde  continuamos  a  viagem  por  melhores caminhos  e  fomos  pernoitar  a  13  k  além  de  S.  José,  na  fazenda  do  capitão José Francisco Furtado, situada em uma das collinas que servem de contraforte á Serra dos Pontões, que corre do norte a sul. Do dorso e vertentes da Serra dos Pontões erguem-se as rochas de  gneiss  de  fórmas  pyramidaes  e  pontudas,  umas  verticaes,  outras fortemente   inclinadas,   conhecidas   geralmente   com   o   nome   de  Pontões  do  Calçado. 


Essas  massas  graniticas  foram  provavelmente injectadas no estado fluido atravez de uma rocha de menor adhesão, que,  desaggregada  e  deslocada  pelas  aguas,  e  outros    agentes,  as  poz a descoberto; a figura e direcção d’estes Pontões, indicam que foram impellidas com força do interior para o exterior: e esta mesmo provave origem tiveram as Torres do Mugay e o Garrafão da Limeira.


Do  caminho  avistamos  a  Serra  do  Jaspe  que  corre  de  N.  a  o.  A estrada nova e a que segue de S. José a esta fazenda cortam em differentes pontos uma rocha massiça de côr avermelhada e roxa, ligando fragmentos de  pedras  de  tamanhos  variaveis,  e  de  naturezas  diversas,  ricas  em materias  organicas  e  repousando  em  alguns  logares  sobre  um  terreno irregularmente estratificado, como é facil de reconhecer-se pela simple inspecção dos cortes da estrada. 


Esta rocha, conhecida com o nome de massapé, pelos lavradores e com o de drifft pelos geologos, é tão possante n’estas regiões que todas as collinas e terrenos não estratificados, ou crystalinos  são  por  ella  formadas. o  massapé  vermelho  é  muito  mais commum e fórma rochas muito mais possantes do que o roxo, e por isso conserva a sua força vegetativa por mais tempo. o districto de S. José é muito montanhoso e retalhado em estreitos valles por onde correm crystallinas e frescas aguas. o seu solo, como já tivemos occasião de dizer, é o melhor que se póde desejar para cultura do café, cuja plantação acha-se bem adiantada e melhor explorada do que  no  Bom  Jesus.  


Foi  n’este  districto  que  existiu  outr’ora  a  procere arvore de Sapucaia, de que acima fallamos. os  seus  bosques  apresentam  as  mesmas  especies  de  madeiras  já conhecidas, menos a violeta; abundam em antas, queixadas, jacotingas e jaos, mais do que o baixo Itabapoana; as cobras venenosas são raras e só vimos uma pelle de surucucutinga, que media mais de onze palmos. Exporta  café,  gado  vaccum  e  cultiva  com  vantagem  todos  os generos alimenticios necessarios ao consumo local. Em vista de tanta magnitude e de tão assombrosa fertilidade em um clima ameno e saudavel, a 81 k. do Porto da Limeira, faziamos a nós mesmos estas perguntas: – Não será este o Paraiso perdido, occultado debaixo d’estes frondosos e sombrios bosques? Não será esta a terra da promissão toda inteira? A cada passo se nos figurava encontrar os exploradores de Moysés á terra de Canaan, curvados sob o peso das messes promettidas. o  que  sahiu  das  mãos  do  Creador  é  esplendido,  maravilhoso;  o que é obra do homem é mesquinho, rachitico.


A culpa d’este atrazo não é dos homens, é tambem o apanagio dos tempos; as mattas foram sempre consideradas como antro de assassinos e criminosos, a sua decente e laboriosa população é de recente data.



A obra completa de Manoel Basílio Furtado, "Itinerario da Freguezia do Senhor Bom Jesus, às minas da Gruta do Castelo", você acessa clicando aqui.

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